segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

Fitas de Cetim

Existe um grande feito no universo musical que nem sempre é notado, ou ao menos nem sempre é valorizado: o da feliz coincidência entre forma e conteúdo. Já comentei aqui o caso de "Love", do John, que acredito ser o mais feliz resultado desta combinação (a música de fato parece um cristal de tão perfeita, não há nada fora do lugar, tanto em termos de letra, como de melodia e, sobretudo, do "espírito geral" da canção). O grande mérito destas canção é o de escapar do funcionamento normal de qualquer música, que, a meu ver, é o da "sugestão": geralmente a letra sugere algo, a música também. Juntando as duas coisas, você chega a um significado ou a uma interpretação. Neste outro caso, não. Sem conhecer muito a canção, você se sente transportado à cena que ela evoca: seja ela qual for. Se for uma lembrança da sua infância, você consegue sentir o cheiro da sua vó cozinhando o bolo, o ranger das tábuas de madeira por onde você e seus primos correm, o som dos passarinhos quando você acordava bem cedo... Deu pra sacar, né?

Vou comentar três deste tipo de canções.

A primeira é uma linda música do White Album, talvez uma das menos conhecidas ou celebradas: Good Night. É uma música do John, doada ao Ringo e orquestrada por George Martin. Trata-se da última música deste maravilhoso álbum duplo, é uma despedida, mas não de qualquer tipo: lembra precisamente o tipo de carinho que a sua mãe fazia antes de você dormir, depois de um dia cansativo, de muitas brincadeiras. E, como eu disse, a música leva o ouvinte precisamente para esta atmosfera: depois de uma aventura que é o White Album, os Beatles carinhosamente te convidam a fechar os olhos, do jeito mais terno possível.

A segunda também não escapa às minhas rememorações infantis. É uma música da trilha sonora do filme "Onde vivem os monstros", que se chama "Worried Shoes". Sabe aquela sensação de você ter um sapato favorito, aquele que você acredita que te faz correr mais rápido? Trata-se disto, mas talvez com os sentimentos em pólos invertidos. A música versa sobre um worried shoe, aquele que você coloca para nunca se esquecer de um erro que você cometeu e que talvez nunca esquecerá, um deslize que, por mais que você caminhe, não se desfazerá como os nós de um cadarço. Enfim: é como se esta canção tivesse encapsulado o sentimento de tropeçar na frente da sua classe toda, ou na frente daquela menina de quem você mais gostou:


Por último, falo da mais nova canção da Oito Mãos: Fitas de Cetim. É uma música do André que, segundo ele próprio, carrega a sua melhor letra. Curiosamente, também trata de laços, como a música acima, mas de uma forma diferente. Como a música ainda não foi gravada, vocês terão que confiar na minha descrição. Há, para mim, dois momentos na música:o primeiro, que é uma espécie de conversa entre o neto e a avó, cujas linhas não deixam dúvidas em relação à imagem a que remete. Trata-se do neto, talvez sentado no chão, olhando a vó, numa cadeira de balanço, tricotando algo de muitas cores vivas. O segundo momento da canção parece nos remeter exatamente ao título da música: fitas de cetim. Talvez uma fita de um presente que você ganhou há muito tempo e cujo embrulho você resolveu guardar, só para lembrar. Talvez a pessoa que tenha te dado nem exista mais, ou tenha há muito tempo deixado a sua vida. O que é fato é que aquela fita te faz sentir de um modo estranho: ela gera um reconhecimento, ao mesmo tempo que um estranhamento. Como se fosse um espelho retorcido, você consegue ver uma imagem ali que, talvez, seja você mesmo. Neste momento você percebe que estes momentos - que marcam as nossas vidas, como um quisto na memória - são como fitas de cetim: sua própria delicadeza é, quem sabe, uma fraqueza, afinal os nós dados naquele tecido tão suave podem se desfazer num simples gesto. Ou, como diz a música: "Enquanto nó, somos a contradição". Nada mais simples, nada mais genial. Somos nós, os nós que acreditamos segurar quase tudo em nossas vidas, mas que, com o puxar de uma fita, podem se desmanchar...

Tudo isto para tirar um pouco do pó deste blog e deixar vocês com vontade de ouvir as novas músicas que logo logo devem sair do forno.

Um abraço

Felipe Bier

2 comentários:

  1. Ancioso pra ouvir as novas músicas. Vocês são geniais. :)

    ResponderExcluir
  2. Eu sou um grande sortudo por estar vendo isso. A música é simplesmente incrível, coisa que é difícil de acreditar que saiu do compositor. Parece que foi dada pra ele, porque os homens não são capazes de fazer tal coisa. Eu posso até dizer que somos todos, entre nós, fitas de cetim, porque vivemos nos presentiando uns aos outros, seja com um abraço comovente ou com uma música dessas. Um grande presente, tanto no sentido substancial quanto no temporal.

    Grande post, cara!

    ResponderExcluir