domingo, 14 de fevereiro de 2010

Café

Decidi falar sobre a música que, para mim, é a mais enigmática de "Vejo Cores nas Coisas". Confesso isso com certo estranhamento, afinal ela é uma composição minha e do André. Mas a verdade é que até hoje tento sacar qual é a de Café, o que ela quer dizer, por que ela é uma canção tão estranha pra mim.

Primeiramente, vale dizer que ela é uma das músicas mais antigas do Cd. Se não me engano, a compusemos em 2006. Mas lembro-me como se fosse hoje do frase que fez nascer a música: remexendo o dia com uma colher de chá. Na época, gostei dessa imagem familiar a ambígua: familiar, pois remete, em seu senso mais imediato, ao retrato de alguém sentado numa mesa, mexendo o líquido de uma xícara com sua colher, pensando na vida; ambígua pois a maneira como se estruturam os termos na frase (numa espécie de mistura entre uma metáfora e uma metonímia) pode dar à colher um poder absurdo. Imagine um dia sendo mexido por uma mera colher de chá? O resultado disso seria a vida organizada (ou desorganizada) num redemoinho. Ao invés de uma imagem tranqüila e contemplativa, esta segunda interpretação nos leva para mais perto do coração da música, que não é nada tranqüilo.

Talvez seja por isso que, à pergunta repetida duas vezes "imagine o que achei?", dá-se uma resposta que, no fundo, não é o acesso a nenhum significado, mas precisamente à falta de um: "tantas horas vagas, tantas notas soltas". Diante desta descoberta, a música se retrai e volta à imagem familiar de uma tarde qualquer, porém num tom muito mais desolado, atentando para os objetos dispostos numa mesa de lanche da tarde. Se a música começa de maneira aflitiva e, talvez por isso, pesada, o fim deste primeiro "ato" é resignado e restrito à mera descrição dos objetos que descansam inertes sobre a mesa: "café, pão e queijo."


Neste momento, há um corte na canção. Entra a parte escrita pelo André como um choque na consciência deste eu-lírico aflito e resignado: "eu preciso, eu tenho é hora! Já foi-se o tempo de olhar pra trás!". O redemoinho - que pode ser inclusive identificado na cadência das guitarras, que parecem dar voltas sobre si mesmas - retorna; entretanto, há uma rotação de perspectiva que permite ao eu-lírico uma nova visão sobre o vórtice de sentimentos em que ele está metido. Passa-se de uma posição passiva, em que se observa o dia sendo remexido por uma colher de chá, para a identificação dos elementos que confundem a consciência daquele que canta. O choque dado pelo coelho de "Alice no país das maravilhas" parece ter surtido efeito: emerge a lembrança que possivelmente desorganizava a mente do nosso personagem "e eu lembrei daquela vez, dos versos que eu te dei". À lembrança sucedem-se os seguintes questionamentos: "eu consegui te alcançar? eu consegui te tocar solta na infância, dentro de palavras?". Torna-se bem claro o que aconteceu no passado: uma carta, ou a tentativa de escrita de uma poesia, que tentava se alçar a um patamar de significação tão alto quanto a própria imagem da infância: inciativa fadada ao fracasso, isso é certo. Não saberia dizer muito bem se esta carta é escrita para outra pessoa ou se para si mesmo. Se tivesse que escolher, diria que se trata mais de uma fantasia do que de algo que realmente aconteceu: os versos, podendo aqui significar exatamente a tentativa de simbolizar algum tipo de sentimento, falham em sua tarefa de alcançar a liberdade da infância (entendida aqui não como uma lembrança dourada e idílica, mas como um momento de total abertura ao mundo, seja para o bem ou para o mal). Novamente, o resultado da tentativa de simbolização resulta num vácuo de significado, expresso na constatação novamente resignada, porém consciente, daquilo que é o espírito da música: a mesa virada do avesso, no meio do redemoinho, sobre a qual estão, ao mesmo tempo, tudo e nada.

Bom, essa foi a minha tentativa de desvelar o segredo dessa música que, para mim, foi e continua sendo a que oferece os maiores desafios para a interpretação.

Bier

Um comentário:

  1. Uma das coisas mais fantásticas na arte é a interpretação... cada um tem a sua. A interpretação do compositor é ainda mais peculiar, sempre!

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